terça-feira, 3 de dezembro de 2013

REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO EM SAÚDE MENTAL E APRESENTAÇÃO DE CASO EM PERSPECTIVA DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO NO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO EM SAÚDE MENTAL E APRESENTAÇÃO DE CASO EM PERSPECTIVA DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO NO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Maurício Marinho Iwai*

RESUMO

            A inserção do trabalho de Acompanhamento Terapêutico (AT) na Rede de Saúde Pública tem sido uma discussão atual. Esse artigo traz pequenas indagações e reflexões e, em seguida, uma apresentação de caso de estágio em um grupo de AT em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município de São Paulo. A intenção é deixar algumas questões em aberto apenas como introdução e contextualização, sem a pretensão de encontrar respostas (menos ainda a partir da apresentação de caso, que se limita a caracterizar a importância do vínculo) e apresentar algumas outras reflexões em sua perspectiva. Nota-se que as reflexões foram escritas atualmente, enquanto  a apresentação de caso teve sua primeira versão apresentada em mesa na I Jornada de Acompanhamento Terapêutico e Instituições: Processo e Ferramentas, realizada em 2011 nesta unidade CAPS.

            RESUMEN

La inserción de la obra de Acompañamiento Terapéutico (AT) en la Red de Salud Pública Brasileño ha sido un debate en curso. Este artículo trae pequeñas cuestiones y reflexiones. Luego una presentación del caso, el resultado de la asociación de un grupo de AT y el Centro de Atenção Psicossocial. La intención es dejar algunas preguntas abiertas sólo como una introducción y contexto, sin la pretensión de encontrar respuestas (menos aún desde el presente caso, que se limita a caracterizar la importancia del apego) y presentar otras reflexiones en el obra de Acompañamiento Terapéutico.

            ABSTRACT

The insertion of Therapeutic Accompaniment (TA) practices in Public Health Network has been an ongoing discussion. This article brings small quests followed by the case presentation as a result of a partnership between a TA Group and the Centro de Atenção Psicossocial. The intention is to leave opened questions only as an introduction and contextualization, with no pretension to give answers (even less from the present case wich will merely characterize the importance of the therapeutic bonding and some other reflections in the Therapeutic Accompaniment proposition).

            PALAVRAS-CHAVE: Acompanhamento Terapêutico, Atenção Psicossocial, Equipes de Referência, Saúde Coletiva.






*          Estudante de Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Acompanhante Terapêutico formado pelo Projeto Humanitas.
Para Arthur Tufolo e Sara Alves Ribeiro.

O Acompanhamento Terapêutico é uma prática que teve início nos anos 70 em diversos países e, a depender dos momentos e lugares, foi nomeado de diversas formas. Atualmente, suas práticas no Brasil são principalmente referenciadas por abordagens pautadas em pensamentos da psicologia, filosofia, concepções clínicas - reduzidas ou ampliadas – e outros saberes. Trata-se de um núcleo de saber em criação e formação. O mercado já entrou em relação direta com a oferta do trabalho de AT e muitas instituições adaptaram as propostas em torno de suas necessidades e objetivos, inclusive o mercado historicamente relacionado com a clientela das psicoterapias. Muitas perguntas podem ser feitas sobre o tema: o trabalho do Acompanhante Terapêutico deve ser feito, no campo da saúde pública? Por qual tipo de profissional ou agente? Em que medida ele pode substituir/reduzir ou complementar a clínica ampliada?
Entendendo aqui clínica não como um trabalho de abordagens psicoterapêuticas e/ou médico-sanitárias, mas como espaço de encontro em que surgem possibilidades de transformação e no qual atuam diversos setores. Falamos não só a respeito de clínica psicológica e clínica médica, mas também clínica da nutrição, dos esportes, etc. Como nos mostra Oliveira, dentro dessa perspectiva o psicólogo e – ouso incluir – outros profissionais da saúde devem:

“(...) treinar as várias metodologias de diagnóstico – individual, social, institucional, comunitário; aprender a fazer os registros de seus projetos de intervenção, bem como o manejo de várias tecnologias necessárias para intervir, tais como as abordagens ecológicas, pesquisa-ação, mobilização sociocultural, dinâmicas grupais, terapia comunitária, análise institucional, intervenção em crises, acompanhamento terapêutico, arteterapia...” (OLIVEIRA, 2011, p. 100 )

Em referência às discussões com nosso mestre Arthur Tufolo e outros tantos, considero o AT como ferramenta e parte de um processo: um perfil de profissional que intervém em casos complexos, com abordagens terapêuticas individuais ou grupais, mas também participa das dinâmicas institucionais, compõe Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) junto às equipes de saúde e não se encontra sozinho em campo.
Dentre os desafios dessa inserção destaca-se a superação de projetos pontuais - de parcerias  relativamente isoladas com dispositivos da rede pública ou associações da sociedade civil - em direção à inserção nos planos de políticas públicas. Muitas vezes esses projetos são caracterizados como formas de iniciação para estudantes, como foi o caso que será aqui apresentado. Em seguida, a maior parte desses estudantes parte para o mercado privado, por não haver campo e articulação na rede pública e também por haver pouco interesse dos mesmos no setor atualmente. Esses dois elementos nutrem um ao outro. A união entre os diversos grupos de AT em diversas cidades para realização de simpósios e conferências parece ser uma possibilidade para a superação deste quadro, almejando espaço e reconhecimento.
A presença de um cargo técnico – mais notadamente na atenção psicossocial modalidade Álcool e Outras Drogas, denominado “Acompanhante de República Terapêutica” – merece ser discutida. Que formação e capacitação estão à disposição desses técnicos? O que tem de similar à proposta de AT? Sabemos que é, a princípio, em relação aos usuários que passam a morar nas Residências Terapêuticas, planejadas pela rede, que o trabalho se desenrola. Outra questão diz respeito às residências terapêuticas privadas ou comunidades terapêuticas fundadas por associações que contratam ATs que exercem trabalhos sobre os quais pouco se discute fora de seus âmbitos.
Para inserção do AT na rede pública, é preciso conhecer os desafios e as dificuldades atuais, o que se encontra em debate na Rede de Atenção Psicossocial, o que é descrito pela literatura e vivenciado no cotidiano dos serviços; frente aos planejamentos e propostas que trouxeram a Reforma Psiquiátrica e a mudança do modelo assistencial.

“A expectativa dos profissionais dessa instituição era oferecer um cuidado personalizado aos pacientes, com a complexidade que cada caso requer, por períodos tão longos quanto o tipo da evolução de sua doença exigisse e sem afastá-los da família e da comunidade” (GOLDBERG, 1998, p.12)

 Para iniciar um tipo de sistematização de elementos do campo: não desconsiderar a sobrecarga e precarização, associadas principalmente ao grande número de pessoas atendidas, como nos mostra Onocko-Campos (2010) em pesquisas que também evidenciam que os casos mais complexos e de risco são aqueles em que os vínculos não conseguem ser estreitados. Ainda, paradoxalmente, tornam-se complexos pelo fato de não poderem ser acolhidos e cuidados em suas realidades de vida, em seu contexto cotidiano. O documento Referências Técnicas para Atuação do Psicólogo no CAPS do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) aponta alguns entraves, estabelecendo relação com a Política Nacional de Saúde Mental:

“...a permanência de um modelo de atenção centrado na figura do médico; uma tensão entre uma abordagem psicossocial e uma abordagem estritamente clínica; e que em alguns lugares, as ações de saúde mental ainda estão restritas ao espaço do CAPS, assim, a forma como a política está estruturada acaba contribuindo para o “aprisionamento” das ações no interior da unidade.” (CREPOP/CFP, 2007)

Haveria algo no isolamento dos serviços de saúde mental, reeditado em suas próprias superações e conquistas, do que foi e é vivenciado pelas práticas de psicoterapia protegidas pelos consultórios e settings terapêuticos? Há também as dificuldades em se trabalhar, em rede, as incertezas quanto ao que se pode oferecer aos usuários e a falta de consenso quanto ao que se entende como promoção de saúde, deixando os profissionais sem referências e embasamentos para agir com segurança. A forma como profissionais relatam a experiência cotidiana nos serviços em diversas pesquisas é congruente:

“CAPS de interior é CAPS tudo(..) eu acho que é a grande barreira que vamos  tentar ultrapassar, porque a história do psicólogo que tá fazendo só os grupos, isso tá relacionado à história das APACS. E no interior é muito complicado. A sobrevivência de CAPS é muito complexa” (...) “E outra coisa também é que os psicólogos e profissionais precisam fazer o trabalho extra muro. E esse trabalho significa não estar ali fazendo as oficinas e não estar necessariamente gerando uma APAC na verdade fazemos entender que esse é o trabalho mais importante do CAPS.” (CREPOP/CFP, 2007)

A expressão ser tudo no que diz respeito a um profissional de referência é extremamente simbólica e remete ao isolamento e possibilidade de sustentação do trabalho, podemos fazer reflexões, uma vez que tal fenômeno tem sido abordado por pesquisas e vivenciado em nossas práticas de estágio em diversos serviços. Não podemos ser tudo sequer no que diz respeito a nós mesmos, precisamos de trocas com o mundo ao nosso redor, relações familiares e amorosas sucumbem quando um lado torna-se tudo para o outro, a diversidade é excluída.
 Miranda e Onocko-Campos (2010) expõem um movimento pendular, uma oscilação, vivenciada por trabalhadores da saúde mental, entre identificação (excessiva e patológica) e isolamento com seus usuários de referência no trabalho clínico. Acontece que, mesmo em distintos modos de organização de equipes de referência, muitas vezes aqueles profissionais que são mais próximos a um usuário sentem-se sozinhos em seu trabalho, na medida em que são requisitados para dar conta de diversas atividades junto ao usuário. Surge assim, uma sobrecarga, excessiva responsabilidade e dificuldade em transformar tais atividades em potência geradora de autonomia. Nessa solidão, não conseguem ver os membros da equipe como parte de um processo de co-responsabilização. O mundo passa a ser apenas o usuário e referência e as ações ficam contaminadas por esse tipo de vínculo. Isso gera agravos na saúde do trabalho, certa tensão.
A partir de possibilidades de reconhecer o próprio sentimento de solidão no processo de trabalho, pode-se buscar garantir que os membros das equipes conheçam uns aos outros, seus diferentes estilos e opiniões políticas e as possibilidades de novos arranjos de trabalho pactuados por todos. Então, o desafio é tornar as ações solitárias em coletivas.

“...por um lado, os pacientes precisam de relações singulares, em que os profissionais se identifiquem com eles e reconheçam sua singularidade. Por outro lado, precisam também de um arranjo sólido, que interdite tal identificação, quando ela não se mostra patológica. Portanto, é imprescindível a constante comunicação entre as estruturações coletivas e individualizadas, para que elas, permanentemente, sustentem-se, desestabilizem-se e toquem-se. Esse fluxo de movimento permite que o paciente encontre variados espaços para experimentar sua polifonia, alojá-la e movimentá-la.” (MIRANDA & ONOCKO-CAMPOS, 2010,  p. 1159).
               
            Passar do sentimento de estar sozinho(s) em um caso para a vivência de um processo realmente coletivo, em que uma equipe pode ser reconhecida como parceira é um alívio muito grande para um ou mais profissionais de referência em um caso; contudo também é importante que o profissional de referência possa ser relativamente livre para acompanhar o usuário em atividades cotidianas e muitas vezes burocráticas que ele, por diversos motivos, frequentemente não consegue fazer sozinho, as entrevistas com usuários e familiares apontaram significativa valorização dessas atividades (Miranda & Onocko-Campos, 2010). Em discussões de grupos de AT fazíamos referência ao quanto acompanhar um usuário em uma ida ao Poupa-tempo para realização de procedimentos para emissão de documento de identidade pode (re)constituir sua identidade existencial ou psíquica.
Os autores citados acima também destacam a importância das supervisões clínicas e institucionais e de certa flexibilidade nas fronteiras disciplinares. E assim como Rosa¹, defendem que as ações dos profissionais especializados devem circular mais pelo território e expandir o limite entre muros com o objetivo de alcançar maior longitunalidade, além de maior integralidade e resolutividade e construção de parcerias efetivas com a Atenção Básica, auxiliando em sua função de reabilitação psicossocial e porta de entrada. No cotidiano da vida dos usuários as pequenas atividades realizadas conjuntamente são de extrema riqueza e valor, não apenas para criação de vínculos, mas também para geração e transformação de significados, formas de pensar e agir.

“Na ocupação cotidiana nos conduzimos de maneira a não pensar o tempo todo sobre o sentido de nossa existência, mas ao desconsiderar o pensamento categórico, a partir do qual levamos nossas atividades diárias, como algo capaz de atingir por si só a essência da existência, Heidegger aponta para a presença do sentido. Realizamos nossa essência no cotidiano, na medida em que a todo instante, temos a chance de sermos propriamente. A todo instante podemos dizer Tu, podemos ser para nós mesmos e o fazemos. (IWAI, 2012, p. 35)

A apresentação da experiência de Acompanhamento Terapêutico, que vem a seguir, expõe um trabalho que não encontrou possibilidade de produção de transformações na vida do usuário enquanto não foi possível articular minimamente as ações propostas com as equipes de referência do CAPS e com a abordagem oferecida à família. Impossível deixar de fazer menção ao fato de que o sentimento de solidão para com os casos atendidos é muito vivenciado também na Atenção Básica, o que foi percebido em outro trabalho de estágio que não será abordado aqui, mas que nos mostra como tal fenômeno perpassa toda a rede.
Antes de apresentar o caso, gostaria de deixar uma mensagem aos grandes mestres da psicologia e de outras áreas, muitos dos quais possuem história de trabalho na saúde pública, mas que hoje realizam predominantemente grupos de estudos e supervisão particulares em seus consultórios. Momentos de mobilização existirão em diversas épocas. Agora parece se apresentar um deles, talvez bastante expressivo. Se por um lado fazemos um apelo aos jovens para que enfrentem os campos de trabalho da psicologia, da medicina, da assistência social e da sociologia nos espaços públicos, considero de extrema importância que mestres também acompanhem esse movimento, que possam se unir e encontrar possibilidades de auxiliar na construção de nossa sociedade.
Considero esse momento oportuno não somente por conta da onda de manifestações que estão ocorrendo atualmente no país, mas principalmente pelo risco da abertura que muitas vezes permite intervenções perversas direcionadas a populações indesejáveis, como foi o caso das Internações Compulsórias em três cidades brasileiras. É hora de descer das montanhas e combinar a sabedoria com a atualidade das discussões. Pesquisas e atuações são potência de transformação política e existencial. Existem grupos em que se misturam jovens profissionais e supervisores experientes com propostas de atuação interessantes, abertos ao diálogo. Precisamos de mais disso e de viabilidade de construções públicas em um país com tanta desigualdade e desamparo.

APRESENTAÇÃO DE CASO

(Texto apresentado na “I Jornada de Acompanhamento Terapêutico e Instituições: Processo e Ferramentas”, realizada no Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, no dia 03 de dezembro de 2011.)

            Em um sábado, no começo de 2009, alguns colegas e eu fomos assistir a uma aula de apresentação do curso de acompanhamento terapêutico do Projeto Humanitas. Durante esse ano, estudamos o método de investigação da fenomenologia e pensamos as práticas. Os encontros eram semanais e tinham duração de duas horas, mas acima de tudo se davam pelo que são (ou foram): encontros. Quero dizer que, mais importante do que a transmissão dos conceitos de angústia, queda, ser-para-morte e outros tantos de Martin Heidegger, o elemento essencial do curso, embora sutil, foi o contato em si entre os – até então – aspirantes a estagiários e os professores/supervisores. Assim, vivemos um dia após o outro com o horizonte de um dia realizar um trabalho terapêutico. Além disso, é preciso valorizar bons aprendizados trazidos por Tufolo, inspirados por práticas e estudos do pensamento oriental.
            O próprio contato/encontro pode ser visto sob a ótica do método fenomenológico. Usando como referência os autores Frederick Pearls e Martin Buber, vamos dizer que só podemos estar realmente com os outros se formos nós mesmos, reconhecendo as influências, confluências e isolamentos:
                       
“abrir um espaço dentro de nós para que a presença do outro ecoe em nós e nos assuste e nos aterrorize e nos encontre e nos apaixone” ² . (DICHTCHEKENIAN, 2008)

            Portanto, foram os encontros, nesse sentido estrito, que se deram no decorrer desse curso e se dão na vida e no cotidiano de cada um, que possibilitam o aprendizado de um cuidado terapêutico. A essência do relacionamento é que no contato ambas as pessoas apresentam mudança. (MAY, 2000)
            O Projeto Humanitas, em 2009, tinha parceria com algumas instituições de saúde. Entre elas, não estava ainda o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, o “CAPS Itapeva”. Foi a partir de uma iniciativa de uma colega de curso que o projeto chegou até a instituição e a parceria aconteceu. Em abril de 2010 tivemos nossa primeira reunião com o Núcleo de Ensino e Pesquisa da instituição. Logo em seguida, as miniequipes nos apresentaram os possíveis casos, aqueles em que se entendia haver necessidade da participação de um AT. Hoje cabe ressaltar que a demanda que se configurou nesse caso é comum a tantos outros na rede de saúde mental: o vínculo das pessoas em sofrimento psíquico com os dispositivos de atenção psicossocial e as possibilidades de apropriação dos chamados loucos, dos espaços institucionais e da cidade.
            No dia em que conheci a pessoa de quem eu seria AT, a qual chamarei aqui de B. para preservar sua identidade, fui recebido na casa da família, conforme combinado previamente com sua mãe. B. tem a mesma idade que tenho – nascemos em 1987. O impacto ao vê-lo pela primeira vez foi muito grande: olhar distante, boca semiaberta, face magra e fala quase incompreensível, monossilábica e sem entonação. Não é a mesma coisa que assistir a um documentário sobre a loucura do musicista Syd Barret do Pink Floyd.
Sem pensar muito, posso dizer que senti um medo de ser tal como aquele que estava à minha frente, caso tivesse, na vida, tamanho desamparo. Ainda, sua feição lembrou-me imediatamente à de meu avô paterno, que fora paciente psiquiátrico e passou por internações em Campinas, longe de sua cidade. Um dia, na época em que eu prestava vestibulares para psicologia,  meu pai e eu entramos no quarto de meu avô (que saía muito pouco da cama) quando meu pai comentou que no ano seguinte eu começaria a estudar psicologia. Então disse “ele vai te curar”, ao passo que meu avô abaixou a cabeça e disse que não havia cura para ele. Cerca de um ano depois ele faleceu. Todos esses acontecimentos – e muitos outros ainda – eram, ao mesmo tempo, parte da minha fuga e da busca pelo papel terapêutico, pelo ser terapêutico, para usar a expressão usada por Juliana Viscone, com quem fiz psicoterapia individual durante o processo.
            B. também estava em seu momento. AT e paciente estavam separados. Por isso, a tentativa de descrever seu contexto na época da intervenção será especialmente parcial, ainda que importante. Um AT foi recomendado para o caso por haver uma demanda de não adesão ao projeto terapêutico. A mãe de B. também expressava essa demanda, dizendo que ele precisava “respirar fora de casa, bater perna”. E ele? Que demanda tinha? Que momento era aquele que B. vivia?
            Pouco posso dizer e tudo que posso expor com propriedade é mais atual, pois no começo do acompanhamento, eu mesmo estava distante. Se posso dizer que sua angústia era grande, digo sem saber o sabor dessas palavras. Alguns fatos podem ilustrar o contexto: B. contrariava as ordens de sua mãe, uma mulher que sofreu muito e cujo sofrimento implicou diretamente no modo de ser de seus filhos. Minha presença como AT em sua vida foi recusada, as tentativas de marcar qualquer encontro eram frustradas e muitos desencontros se deram. O primeiro espaço de pequenos encontros e contatos verdadeiros foi o telefone. Assim, ambos, paciente e AT, poderiam permanecer (o primeiro com menos medo do contato e o segundo sustentando sua hesitação³) .
            Esses eventos aconteceram no decorrer do primeiro ano, ao final do qual – e diante de certas experiências – pude finalmente perceber como eu estava agindo e por qual motivação. Minhas defesas finalmente chegaram à consciência. Consegui retornar ao simples e permanecer. Casa como uma luva o conceito de tonalidade afetiva (ou disposição) da fenomenologia, que diz que nosso contato com o mundo é sempre atravessado pela perspectiva, que é a nossa, a de cada um. O mundo é então, para Heidegger, radicalmente nós mesmos: somos mundo. Por isso, compreensão e disposição estão sempre imbricados. A angústia surge nessas relações com o mundo – expressão de si mesmo, aquele que é sempre questão – e nos leva a agir de diversas maneiras.  Aquele que não almeja poder e controle e aceita com pura perplexidade a estranheza da experiência poderá trazer à galope a liberdade para compreensão. No plano da onticidade, quando sentimos necessidade de controlar, entender e dominar, frequentemente falhamos ou ficamos com o sentimento de dívida. Por outro lado, ao tentarmos compreender algo:
                       
“Já não estamos mais no domínio da mera objetividade neutra. A existência caiu sob o foco do nosso olhar. E quando a existência entra em foco, abre-se o mundo humano, o mundo dos significados.” (SAPIENZA, 2007).
                       
            De fato, a busca pelos significados não é fácil. Abdicar do controle em minha prática como AT foi planejar menos propostas de atividades, aceitar os comportamentos de B., por mais que eles revelassem sua solidão e, mais importante, foi aceitar a mim mesmo para então aceitá-lo e romper com a solidão.
                       
“A aceitação por outra pessoa, tal como o terapeuta, mostra ao paciente que ele não mais precisa lutar sua batalha principal na linha de frente, diante do fato de ser ou não aceito por quem quer que seja ou até mesmo pelo mundo; a aceitação o deixa livre para experimentar o próprio ser. (...) A questão crucial é como esse indivíduo, em sua consciência e responsabilidade pela própria existência , reage diante do fato de que pode ser aceito” (MAY, 2000, p. 111).
     
¹ A  psicóloga Elisa Zaneratto Rosa foi supervisora do autor em dois estágios, professora em algumas disciplinas do curso de psicologia da PUC-SP e apoiadora de diversas atividades.
² citação extraída de aula realizada pelo professor Nichan Ditchekenian no segundo semestre de 2008, no Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde (FACHS) da PUC-SP.
³ termo aqui entendido a partir do conceito de Winnicott, em que designa um fenômeno anterior à resistência, a partir do qual o paciente ainda não encontra possibilidade de vínculo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

            OLIVEIRA, M. V. Mesa: A ação clínica e os espaços institucionais das políticas públicas: desafios éticos e técnicos. Seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas / 1. ed. Brasília:  Conselho Federal de Psicologia. - CFP, 2011.

            GOLDBERG, J. I. Cotidiano e Instituição: revendo o tratamento de pessoas com transtorno mental em instituições públicas. Tese de Doutorado. São Paulo, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1998.

            CREPOP/CFP Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial. Brasília, julho/2013 1ª Edição

            MIRANDA, L. & ONOCKO-CAMPOS, R. T. Análise das equipes de referência em saúde
mental: uma perspectiva de gestão da clínica. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 26(6): 1153-1162, jun, 2010.

            IWAI, M. M. Relações Terapêuticas no Cotidiano. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a graduação no curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. São Paulo, Junho de 2012.

SAPIENZA, B. T. Do Desabrigo à Confiança: Daseinsanalyse e Terapia. São Paulo: Ed. Escuta, 2007.

MAY, R.  A Descoberta do Ser: estudos sobre a psicologia existencial. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000.