REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO EM
SAÚDE MENTAL E APRESENTAÇÃO DE CASO EM PERSPECTIVA DE ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO NO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Maurício
Marinho Iwai*
RESUMO
A inserção do trabalho de
Acompanhamento Terapêutico (AT) na Rede de Saúde Pública tem sido uma discussão
atual. Esse artigo traz pequenas indagações e reflexões e, em seguida, uma
apresentação de caso de estágio em um grupo de AT em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município de São Paulo. A
intenção é deixar algumas questões em aberto apenas como introdução e
contextualização, sem a pretensão de encontrar respostas (menos ainda a partir
da apresentação de caso, que se limita a caracterizar a importância do vínculo)
e apresentar algumas outras reflexões em sua perspectiva. Nota-se que as
reflexões foram escritas atualmente, enquanto
a apresentação de caso teve sua primeira versão apresentada em mesa na I
Jornada de Acompanhamento Terapêutico e Instituições: Processo e Ferramentas,
realizada em 2011 nesta unidade CAPS.
RESUMEN
La
inserción de la obra de Acompañamiento Terapéutico (AT) en la Red de Salud
Pública Brasileño ha sido un debate en curso. Este artículo trae pequeñas cuestiones
y reflexiones. Luego una presentación del caso, el resultado de la asociación
de un grupo de AT y el Centro de Atenção
Psicossocial. La intención es dejar algunas preguntas abiertas sólo como
una introducción y contexto, sin la pretensión de encontrar respuestas (menos
aún desde el presente caso, que se limita a caracterizar la importancia del
apego) y presentar otras reflexiones en el obra de Acompañamiento Terapéutico.
ABSTRACT
The insertion of
Therapeutic Accompaniment (TA) practices in Public Health Network has been an
ongoing discussion. This article brings small quests followed by the case
presentation as a result of a partnership between a TA Group and the Centro de
Atenção Psicossocial. The intention is to leave opened questions only as an
introduction and contextualization, with no pretension to give answers (even
less from the present case wich will merely characterize the importance of the
therapeutic bonding and some other reflections in the Therapeutic Accompaniment
proposition).
PALAVRAS-CHAVE: Acompanhamento Terapêutico,
Atenção Psicossocial, Equipes de Referência, Saúde Coletiva.
* Estudante
de Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Acompanhante Terapêutico formado pelo Projeto Humanitas.
Para Arthur Tufolo e Sara Alves
Ribeiro.
O
Acompanhamento Terapêutico é uma prática que teve início nos anos 70 em
diversos países e, a depender dos momentos e lugares, foi nomeado de diversas
formas. Atualmente, suas práticas no Brasil são principalmente referenciadas
por abordagens pautadas em pensamentos da psicologia, filosofia, concepções
clínicas - reduzidas ou ampliadas – e outros saberes. Trata-se de um núcleo de
saber em criação e formação. O mercado já entrou em relação direta com a oferta
do trabalho de AT e muitas instituições adaptaram as propostas em torno de suas
necessidades e objetivos, inclusive o mercado historicamente relacionado com a
clientela das psicoterapias. Muitas perguntas podem ser feitas sobre o tema: o
trabalho do Acompanhante Terapêutico deve ser feito, no campo da saúde pública?
Por qual tipo de profissional ou agente? Em que medida ele pode substituir/reduzir
ou complementar a clínica ampliada?
Entendendo
aqui clínica não como um trabalho de abordagens psicoterapêuticas e/ou
médico-sanitárias, mas como espaço de encontro em que surgem possibilidades de
transformação e no qual atuam diversos setores. Falamos não só a respeito de
clínica psicológica e clínica médica, mas também clínica da nutrição, dos
esportes, etc. Como nos mostra Oliveira, dentro dessa perspectiva o psicólogo e
– ouso incluir – outros profissionais da saúde devem:
“(...) treinar
as várias metodologias de diagnóstico – individual, social, institucional,
comunitário; aprender a fazer os registros de seus projetos de intervenção, bem
como o manejo de várias tecnologias necessárias para intervir, tais como as
abordagens ecológicas, pesquisa-ação, mobilização sociocultural, dinâmicas
grupais, terapia comunitária, análise institucional, intervenção em crises,
acompanhamento terapêutico, arteterapia...” (OLIVEIRA, 2011, p. 100 )
Em
referência às discussões com nosso mestre Arthur Tufolo e outros tantos, considero
o AT como ferramenta e parte de um processo: um perfil de profissional que
intervém em casos complexos, com abordagens terapêuticas individuais ou
grupais, mas também participa das dinâmicas institucionais, compõe Projetos Terapêuticos Singulares (PTS)
junto às equipes de saúde e não se encontra sozinho em campo.
Dentre
os desafios dessa inserção destaca-se a superação de projetos pontuais - de
parcerias relativamente isoladas com
dispositivos da rede pública ou associações da sociedade civil - em direção à inserção
nos planos de políticas públicas. Muitas vezes esses projetos são
caracterizados como formas de iniciação para estudantes, como foi o caso que
será aqui apresentado. Em seguida, a maior parte desses estudantes parte para o
mercado privado, por não haver campo e articulação na rede pública e também por
haver pouco interesse dos mesmos no setor atualmente. Esses dois elementos
nutrem um ao outro. A união entre os diversos grupos de AT em diversas cidades
para realização de simpósios e conferências parece ser uma possibilidade para a
superação deste quadro, almejando espaço e reconhecimento.
A
presença de um cargo técnico – mais notadamente na atenção psicossocial
modalidade Álcool e Outras Drogas, denominado “Acompanhante de República
Terapêutica” – merece ser discutida. Que formação e capacitação estão à
disposição desses técnicos? O que tem de similar à proposta de AT? Sabemos que
é, a princípio, em relação aos usuários que passam a morar nas Residências
Terapêuticas, planejadas pela rede, que o trabalho se desenrola. Outra questão
diz respeito às residências terapêuticas privadas ou comunidades terapêuticas
fundadas por associações que contratam ATs que exercem trabalhos sobre os quais
pouco se discute fora de seus âmbitos.
Para
inserção do AT na rede pública, é preciso conhecer os desafios e as
dificuldades atuais, o que se encontra em debate na Rede de Atenção
Psicossocial, o que é descrito pela literatura e vivenciado no cotidiano dos
serviços; frente aos planejamentos e propostas que trouxeram a Reforma
Psiquiátrica e a mudança do modelo assistencial.
“A expectativa
dos profissionais dessa instituição era oferecer um cuidado personalizado aos
pacientes, com a complexidade que cada caso requer, por períodos tão longos
quanto o tipo da evolução de sua doença exigisse e sem afastá-los da família e
da comunidade” (GOLDBERG, 1998, p.12)
Para iniciar um tipo de sistematização de
elementos do campo: não desconsiderar a sobrecarga e precarização, associadas
principalmente ao grande número de pessoas atendidas, como nos mostra
Onocko-Campos (2010) em pesquisas que também evidenciam que os casos mais
complexos e de risco são aqueles em que os vínculos não conseguem ser
estreitados. Ainda, paradoxalmente, tornam-se complexos pelo fato de não
poderem ser acolhidos e cuidados em suas realidades de vida, em seu contexto
cotidiano. O documento Referências
Técnicas para Atuação do Psicólogo no CAPS do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas
(CREPOP) aponta alguns entraves, estabelecendo relação com a Política
Nacional de Saúde Mental:
“...a
permanência de um modelo de atenção centrado na figura do médico; uma tensão
entre uma abordagem psicossocial e uma abordagem estritamente clínica; e que em
alguns lugares, as ações de saúde mental ainda estão restritas ao espaço do
CAPS, assim, a forma como a política está estruturada acaba contribuindo para o
“aprisionamento” das ações no interior da unidade.” (CREPOP/CFP, 2007)
Haveria
algo no isolamento dos serviços de saúde mental, reeditado em suas próprias
superações e conquistas, do que foi e é vivenciado pelas práticas de
psicoterapia protegidas pelos consultórios e settings terapêuticos? Há também as dificuldades em se trabalhar,
em rede, as incertezas quanto ao que se pode oferecer aos usuários e a falta de
consenso quanto ao que se entende como promoção de saúde, deixando os
profissionais sem referências e embasamentos para agir com segurança. A forma
como profissionais relatam a experiência cotidiana nos serviços em diversas
pesquisas é congruente:
“CAPS de
interior é CAPS tudo(..) eu acho que é a grande barreira que vamos tentar ultrapassar, porque a história do
psicólogo que tá fazendo só os grupos, isso tá relacionado à história das
APACS. E no interior é muito complicado. A sobrevivência de CAPS é muito
complexa” (...) “E outra coisa também é que os psicólogos e profissionais
precisam fazer o trabalho extra muro. E esse trabalho significa não estar ali
fazendo as oficinas e não estar necessariamente gerando uma APAC na verdade
fazemos entender que esse é o trabalho mais importante do CAPS.” (CREPOP/CFP,
2007)
A
expressão ser tudo no que diz
respeito a um profissional de referência é extremamente simbólica e remete ao
isolamento e possibilidade de sustentação do trabalho, podemos fazer reflexões,
uma vez que tal fenômeno tem sido abordado por pesquisas e vivenciado em nossas
práticas de estágio em diversos serviços. Não podemos ser tudo sequer no que diz respeito a nós mesmos, precisamos de
trocas com o mundo ao nosso redor, relações familiares e amorosas sucumbem
quando um lado torna-se tudo para o outro, a diversidade é excluída.
Miranda e Onocko-Campos (2010) expõem um
movimento pendular, uma oscilação, vivenciada por trabalhadores da saúde
mental, entre identificação (excessiva e patológica) e isolamento com seus
usuários de referência no trabalho clínico. Acontece que, mesmo em distintos
modos de organização de equipes de referência, muitas vezes aqueles
profissionais que são mais próximos a um usuário sentem-se sozinhos em seu
trabalho, na medida em que são requisitados para dar conta de diversas
atividades junto ao usuário. Surge assim, uma sobrecarga, excessiva
responsabilidade e dificuldade em transformar tais atividades em potência
geradora de autonomia. Nessa solidão, não conseguem ver os membros da equipe
como parte de um processo de co-responsabilização. O mundo passa a ser apenas o
usuário e referência e as ações ficam contaminadas por esse tipo de vínculo.
Isso gera agravos na saúde do trabalho, certa tensão.
A
partir de possibilidades de reconhecer o próprio sentimento de solidão no
processo de trabalho, pode-se buscar garantir que os membros das equipes
conheçam uns aos outros, seus diferentes estilos e opiniões políticas e as
possibilidades de novos arranjos de trabalho pactuados por todos. Então, o
desafio é tornar as ações solitárias em coletivas.
“...por um lado, os pacientes precisam de relações singulares, em que os
profissionais se identifiquem com eles e reconheçam sua singularidade. Por
outro lado, precisam também de um arranjo sólido, que interdite tal
identificação, quando ela não se mostra patológica. Portanto, é imprescindível
a constante comunicação entre as estruturações coletivas e individualizadas,
para que elas, permanentemente, sustentem-se, desestabilizem-se e toquem-se.
Esse fluxo de movimento permite que o paciente encontre variados espaços para
experimentar sua polifonia, alojá-la e movimentá-la.” (MIRANDA &
ONOCKO-CAMPOS, 2010, p. 1159).
Passar do sentimento de estar
sozinho(s) em um caso para a vivência de um processo realmente coletivo, em que
uma equipe pode ser reconhecida como parceira é um alívio muito grande para um
ou mais profissionais de referência em um caso; contudo também é importante que
o profissional de referência possa ser relativamente livre para acompanhar o
usuário em atividades cotidianas e muitas vezes burocráticas que ele, por
diversos motivos, frequentemente não consegue fazer sozinho, as entrevistas com
usuários e familiares apontaram significativa valorização dessas atividades
(Miranda & Onocko-Campos, 2010). Em discussões de grupos de AT fazíamos
referência ao quanto acompanhar um usuário em uma ida ao Poupa-tempo para
realização de procedimentos para emissão de documento de identidade pode (re)constituir
sua identidade existencial ou psíquica.
Os
autores citados acima também destacam a importância das supervisões clínicas e
institucionais e de certa flexibilidade nas fronteiras disciplinares. E assim
como Rosa¹, defendem que as ações dos profissionais especializados devem
circular mais pelo território e expandir o limite entre muros com o objetivo de
alcançar maior longitunalidade, além de maior integralidade e resolutividade e
construção de parcerias efetivas com a Atenção Básica, auxiliando em sua função
de reabilitação psicossocial e porta de entrada. No cotidiano da vida dos
usuários as pequenas atividades realizadas conjuntamente são de extrema riqueza
e valor, não apenas para criação de vínculos, mas também para geração e
transformação de significados, formas de pensar e agir.
“Na ocupação
cotidiana nos conduzimos de maneira a não pensar o tempo todo sobre o sentido
de nossa existência, mas ao desconsiderar o pensamento categórico, a partir do
qual levamos nossas atividades diárias, como algo capaz de atingir por si só a
essência da existência, Heidegger aponta para a presença do sentido. Realizamos
nossa essência no cotidiano, na medida em que a todo instante, temos a chance
de sermos propriamente. A todo instante podemos dizer Tu, podemos ser para nós
mesmos e o fazemos. (IWAI, 2012, p. 35)
A
apresentação da experiência de Acompanhamento Terapêutico, que vem a seguir,
expõe um trabalho que não encontrou possibilidade de produção de transformações
na vida do usuário enquanto não foi possível articular minimamente as ações
propostas com as equipes de referência do CAPS e com a abordagem oferecida à
família. Impossível deixar de fazer menção ao fato de que o sentimento de
solidão para com os casos atendidos é muito vivenciado também na Atenção
Básica, o que foi percebido em outro trabalho de estágio que não será abordado
aqui, mas que nos mostra como tal fenômeno perpassa toda a rede.
Antes
de apresentar o caso, gostaria de deixar uma mensagem aos grandes mestres da
psicologia e de outras áreas, muitos dos quais possuem história de trabalho na
saúde pública, mas que hoje realizam predominantemente grupos de estudos e
supervisão particulares em seus consultórios. Momentos de mobilização existirão
em diversas épocas. Agora parece se apresentar um deles, talvez bastante
expressivo. Se por um lado fazemos um apelo aos jovens para que enfrentem os
campos de trabalho da psicologia, da medicina, da assistência social e da
sociologia nos espaços públicos, considero de extrema importância que mestres
também acompanhem esse movimento, que possam se unir e encontrar possibilidades
de auxiliar na construção de nossa sociedade.
Considero
esse momento oportuno não somente por conta da onda de manifestações que estão
ocorrendo atualmente no país, mas principalmente pelo risco da abertura que
muitas vezes permite intervenções perversas direcionadas a populações
indesejáveis, como foi o caso das Internações Compulsórias em três cidades
brasileiras. É hora de descer das montanhas e combinar a sabedoria com a
atualidade das discussões. Pesquisas e atuações são potência de transformação
política e existencial. Existem grupos em que se misturam jovens profissionais
e supervisores experientes com propostas de atuação interessantes, abertos ao
diálogo. Precisamos de mais disso e de viabilidade de construções públicas em
um país com tanta desigualdade e desamparo.
APRESENTAÇÃO DE CASO
(Texto
apresentado na “I Jornada de Acompanhamento Terapêutico e Instituições:
Processo e Ferramentas”, realizada no Centro de Atenção Psicossocial Professor
Luiz da Rocha Cerqueira, no dia 03 de dezembro de 2011.)
Em um sábado, no começo de 2009,
alguns colegas e eu fomos assistir a uma aula de apresentação do curso de
acompanhamento terapêutico do Projeto Humanitas. Durante esse ano, estudamos o
método de investigação da fenomenologia e pensamos as práticas. Os encontros
eram semanais e tinham duração de duas horas, mas acima de tudo se davam pelo
que são (ou foram): encontros. Quero dizer que, mais importante do que a transmissão
dos conceitos de angústia, queda, ser-para-morte e outros tantos de Martin Heidegger, o elemento
essencial do curso, embora sutil, foi o contato em si entre os – até então – aspirantes
a estagiários e os professores/supervisores. Assim, vivemos um dia após o outro
com o horizonte de um dia realizar um trabalho terapêutico. Além disso, é
preciso valorizar bons aprendizados trazidos por Tufolo, inspirados por
práticas e estudos do pensamento oriental.
O próprio contato/encontro pode ser
visto sob a ótica do método fenomenológico. Usando como referência os autores
Frederick Pearls e Martin Buber, vamos dizer que só podemos estar realmente com
os outros se formos nós mesmos, reconhecendo as influências, confluências e
isolamentos:
“abrir um espaço dentro de nós para que a presença do outro ecoe em nós
e nos assuste e nos aterrorize e nos encontre e nos apaixone” ² . (DICHTCHEKENIAN,
2008)
Portanto, foram os encontros, nesse
sentido estrito, que se deram no decorrer desse curso e se dão na vida e no
cotidiano de cada um, que possibilitam o aprendizado de um cuidado terapêutico.
A
essência do relacionamento é que no contato ambas as pessoas apresentam mudança.
(MAY, 2000)
O Projeto Humanitas, em 2009, tinha
parceria com algumas instituições de saúde. Entre elas, não estava ainda o
Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, o “CAPS
Itapeva”. Foi a partir de uma iniciativa de uma colega de curso que o projeto
chegou até a instituição e a parceria aconteceu. Em abril de 2010 tivemos nossa
primeira reunião com o Núcleo de Ensino e Pesquisa da instituição. Logo em
seguida, as miniequipes nos apresentaram os possíveis casos, aqueles em que se
entendia haver necessidade da participação de um AT. Hoje cabe ressaltar que a
demanda que se configurou nesse caso é comum a tantos outros na rede de saúde
mental: o vínculo das pessoas em sofrimento psíquico com os dispositivos de
atenção psicossocial e as possibilidades de apropriação dos chamados loucos,
dos espaços institucionais e da cidade.
No dia em que conheci a pessoa de
quem eu seria AT, a qual chamarei aqui de B. para preservar sua identidade, fui
recebido na casa da família, conforme combinado previamente com sua mãe. B. tem
a mesma idade que tenho – nascemos em 1987. O impacto ao vê-lo pela primeira
vez foi muito grande: olhar distante, boca semiaberta, face magra e fala quase
incompreensível, monossilábica e sem entonação. Não é a mesma coisa que
assistir a um documentário sobre a loucura do musicista Syd Barret do Pink Floyd.
Sem
pensar muito, posso dizer que senti um medo de ser tal como aquele que estava à
minha frente, caso tivesse, na vida, tamanho desamparo. Ainda, sua feição
lembrou-me imediatamente à de meu avô paterno, que fora paciente psiquiátrico e
passou por internações em Campinas, longe de sua cidade. Um dia, na época em
que eu prestava vestibulares para psicologia,
meu pai e eu entramos no quarto de meu avô (que saía muito pouco da cama)
quando meu pai comentou que no ano seguinte eu começaria a estudar psicologia. Então
disse “ele vai te curar”, ao passo que meu avô abaixou a cabeça e disse que não
havia cura para ele. Cerca de um ano depois ele faleceu. Todos esses
acontecimentos – e muitos outros ainda – eram, ao mesmo tempo, parte da minha
fuga e da busca pelo papel terapêutico, pelo ser terapêutico, para usar a expressão usada por Juliana Viscone,
com quem fiz psicoterapia individual durante o processo.
B. também estava em seu momento. AT
e paciente estavam separados. Por isso, a tentativa de descrever seu contexto
na época da intervenção será especialmente parcial, ainda que importante. Um AT
foi recomendado para o caso por haver uma demanda de não adesão ao projeto
terapêutico. A mãe de B. também expressava essa demanda, dizendo que ele
precisava “respirar fora de casa, bater perna”. E ele? Que demanda tinha? Que
momento era aquele que B. vivia?
Pouco posso dizer e tudo que posso expor
com propriedade é mais atual, pois no começo do acompanhamento, eu mesmo estava
distante. Se posso dizer que sua angústia era grande, digo sem saber o sabor
dessas palavras. Alguns fatos podem ilustrar o contexto: B. contrariava as
ordens de sua mãe, uma mulher que sofreu muito e cujo sofrimento implicou
diretamente no modo de ser de seus filhos. Minha presença como AT em sua vida
foi recusada, as tentativas de marcar qualquer encontro eram frustradas e
muitos desencontros se deram. O primeiro espaço de pequenos encontros e
contatos verdadeiros foi o telefone. Assim, ambos, paciente e AT, poderiam
permanecer (o primeiro com menos medo do contato e o segundo sustentando sua
hesitação³) .
Esses eventos aconteceram no
decorrer do primeiro ano, ao final do qual – e diante de certas experiências –
pude finalmente perceber como eu estava agindo e por qual motivação. Minhas
defesas finalmente chegaram à consciência. Consegui retornar ao simples e
permanecer. Casa como uma luva o conceito de tonalidade afetiva (ou disposição) da fenomenologia, que diz que
nosso contato com o mundo é sempre atravessado pela perspectiva, que é a nossa,
a de cada um. O mundo é então, para Heidegger, radicalmente nós mesmos: somos
mundo. Por isso, compreensão e disposição estão sempre imbricados. A
angústia surge nessas relações com o mundo – expressão de si mesmo, aquele que
é sempre questão – e nos leva a agir de diversas maneiras. Aquele que não almeja poder e controle e
aceita com pura perplexidade a estranheza da experiência poderá trazer à galope
a liberdade para compreensão. No plano da onticidade, quando sentimos
necessidade de controlar, entender e dominar, frequentemente falhamos ou
ficamos com o sentimento de dívida. Por outro lado, ao tentarmos compreender
algo:
“Já não estamos mais no domínio da mera objetividade neutra. A
existência caiu sob o foco do nosso olhar. E quando a existência entra em foco,
abre-se o mundo humano, o mundo dos significados.” (SAPIENZA,
2007).
De fato, a busca pelos significados
não é fácil. Abdicar do controle em minha prática como AT foi planejar menos
propostas de atividades, aceitar os comportamentos de B., por mais que eles
revelassem sua solidão e, mais importante, foi aceitar a mim mesmo para então
aceitá-lo e romper com a solidão.
“A aceitação por outra pessoa, tal como o terapeuta, mostra ao paciente
que ele não mais precisa lutar sua batalha principal na linha de frente, diante
do fato de ser ou não aceito por quem quer que seja ou até mesmo pelo mundo; a
aceitação o deixa livre para experimentar o próprio ser. (...) A questão
crucial é como esse indivíduo, em sua consciência e responsabilidade pela própria
existência , reage diante do fato de que pode ser aceito” (MAY, 2000, p.
111).
¹
A psicóloga Elisa Zaneratto Rosa foi
supervisora do autor em dois estágios, professora em algumas disciplinas do
curso de psicologia da PUC-SP e apoiadora de diversas atividades.
²
citação extraída de aula realizada pelo
professor Nichan Ditchekenian no segundo semestre de 2008, no Curso de
Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde (FACHS) da PUC-SP.
³ termo aqui entendido a partir do conceito de Winnicott, em
que designa um fenômeno anterior à resistência,
a partir do qual o paciente ainda não encontra possibilidade de vínculo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
OLIVEIRA, M. V. Mesa: A ação clínica e os espaços institucionais das políticas
públicas: desafios éticos e técnicos. Seminário Nacional Psicologia e
Políticas Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas / 1. ed.
Brasília: Conselho Federal de
Psicologia. - CFP, 2011.
GOLDBERG, J. I. Cotidiano e Instituição: revendo o tratamento de pessoas com transtorno
mental em instituições públicas. Tese de Doutorado. São Paulo, Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo, 1998.
CREPOP/CFP Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) no CAPS - Centro
de Atenção Psicossocial. Brasília, julho/2013 1ª Edição
MIRANDA, L. &
ONOCKO-CAMPOS, R. T. Análise das equipes de
referência em saúde
mental: uma perspectiva de
gestão da clínica. Cad.
Saúde Pública, Rio de Janeiro, 26(6): 1153-1162, jun, 2010.
IWAI, M. M. Relações Terapêuticas no Cotidiano. Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como exigência parcial para a graduação no curso de Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. São Paulo, Junho de
2012.
SAPIENZA, B. T. Do Desabrigo à Confiança:
Daseinsanalyse e Terapia. São
Paulo: Ed. Escuta, 2007.
MAY, R.
A Descoberta do Ser: estudos sobre a psicologia existencial. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000.