segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Mas, por dezenas de vezes, estas faces opostas ainda se alternaram: a face de uma criança feliz, livre de sintomas, e a psicótica atormentada. A fase psicótica podia ser prevista, com uma precisão empírica, toda vez que era confrontada com o âmbito de sua feminilidade sensual e emocionalmente amadurecida. A mais veemente exacerbação esquizofrênica que a paciente iria enfrentar durante sua análise foi por exemplo antecipada por três sonhos que pressagiavam essa confrontação. No primeiro sonho, uma serpente rodeava-a. A cobra aproximava-se "como um gato, permanecendo ao redor de uma tigela de leite quente, da qual ela não se afastaria enquanto não tivesse devorado tudo. Eu estava terrivelmente assustada. Pensei que a única coisa a fazer seria pular para escapar desse círculo. Pulei, mas a cobra parou de serpentear e foi atrás de mim. Investiu contra mim várias vezes, e cada vez eu tinha que saltar. Depois ela estava sob mim, e rodopiava, ficando novamente atrás de mim. Eu tinha que ficar pulando para evitar que ela arremetesse contra mim. Ela manteve esse jogo comigo, até que acordei, por absoluto cansaço e medo".

O terapeuta perguntou se era tão surpreendente para a paciente que ela estivesse tão cansada o tempo todo e sem forças para qualquer tipo de trabalho, se tinha que usar toda sua energia nesse incessante pular fora do caminho da serpente, a mensageira do campo sensual e terreno de sua vida.

"Sim!" ela continuou ansiosamente, "mas não seria horrível se serpentes começassem a sair de mim, ou se eu mesma me tornasse uma cobra? Por acaso você seria capaz de me dizer como é que é eu poderia me comportar então?"

"Por acaso não seria característico de sua parte", interveio o terapeuta, "que mesmo quando você se imagina como uma serpente, a primeira coisa que lhe vem à mente é determinar qual o comportamento correto?"

O segundo sonho estava ligado ao ditador Hitler, que veio a seu quarto. Ele lhe era particularmente repulsivo, devido à sua testa baixa, que lhe dava uma aparência estúpida e selvagem. Para puxar assunto, a sonhadora começa a falar a respeito de estudos estatísticos sobre a incidência de doenças mentais na Alemanha. O sonho acaba nesse ponto. O terapeuta pergunta por qual razão, dentre todos os homens possíveis, somente um ditador inferior tinha permissão para entrar no seu mundo dos sonhos. Além disso, notou como era curioso o fato de que o único relacionamento com ele fosse através de uma conversa científica.

Sim, os homens ainda são totalmente incompreensíveis para mim", concordou a paciente. "Por exemplo, eu nunca ousaria tomar aulas de dança . Morreria de medo se alguém me convidasse para dançar. Só me sinto à vontade com meus colegas se puder falar de medicina com eles."

No terceiro sonho, ela viu irromper um incêndio numa loja. Era a loja onde levara suas roupas de verão para serem remodeladas. Algumas horas depois de acordar desse sonho, teve uma severa urticária, que se alastrou por todo o corpo, mas que atingiu especialmente a parte interna das coxas. O analista registrou em silêncio essa comunicação física, e depois recapitulou o sonho, comentando: "Algo pegou fogo e está queimando; algo que, de certo modo, está relacionado com seu desejo feminino de ser atraente. Mas, em primeiro lugar, não foi você mesma que queimou com seu desejo de atrair. Isso seria ousar demais. O sonho não mostra você queimando. Somente a loja, isto é, algo anônimo. Em segundo lugar, o fogo da vitalidade aparece para você apenas na forma de uma conflagração destrutiva, um perigo".

Infalivelmente, a fase alternada de bem-estar podia ser restabelecida trazendo a paciente de volta ao âmbito pré-sexual de uma criança. Mas essa experimentação estava longe de ser um jogo científico. Era fundamentalmente a única e indispensável medida terapêutica pela qual alguém poderia tornar acessível a ela uma genuína maturação, uma lenta "reunião" de todas as pontencialidades de sua vida, e a integração das mesmas em um ser maduro, independente e autoconfiante. Só era necessário expor gradativamente o que era pedido a ela, no sentido de sustentar suas exposições aos ataques das áreas da vida inerentes aos fenômenos do amor adulto.

No início da fase final da terapia, apareceu um sonho que apontou um novo caminho à paciente. A sonhadora entrou em sua casa, que era grande e espaçosa, mas vazia, parecendo demolida e ameaçada de desabar. Inicialmente, a paciente estava desanimada. Depois ela notou que dois trabalhadores estavam ocupados com as reformas. Para sua grande surpresa, reconheceu-os como sendo ninguém menos que os artistas Michelângelo e Picasso. Nesse momento, sentiu que tudo ficaria bem.

Após esse sonho aventurou-se, em sua vida acordada, a dar importância a seu considerável talento para o desenho, levando-o a sério e apreciando-o. Iniciou seu treino como escultora. Ousou também, progressivamente, apropriar-se das pontencialidades sensuais e eróticas da vida, que até então tinham sido tão repelidas. Isso ocorreu como em qualquer terapia bem sucedida que usasse a linha analítica clássica. Novamente foi um sonho que, de forma impressionante, iluminou o terapeuta com relação a esse desenvolvimento. A paciente relatou da seguinte forma tal sonho: "Sou uma conferencista universitária e estou para dar uma palestra a uma classe de mulheres universitárias estudantes de medicina, sobre o Amphioxus lanceolatus. Assim que entro no anfiteatro, percebo imediatamente que já tinha dado aquela conferência para todas aquelas alunas. Não fazia sentido repetir a palestra. Então, começo a rir, e de repente todas estão rindo comigo. Nós todas esquecemos a conferência. Instaura-se uma atmosfera cordial e aconchegante, e nós todas conversamos alegremente a respeito da vida sexual".

É verdade que, no início, no próprio sonho, a relação com os primórdios rudimentares da vida sexual (Amphioxus lanceolatus é o mais primitivo dos vertebrados) é ainda remota, intelectual e objetivada, resultando em um tópico de uma conferência científica. Mas a paciente abandona rapidamente esta velha atitude de "já ter estado aqui antes" e abre-se consideravelmente para a esfera da sexualidade.

Um ano antes, uma aproximação nessa área do nosso mundo teria, sem dúvida, precipitado uma nova recaída em severas alucinações psicóticas. Como testemunha disso, há o sonho com Hitler, para quem a paciente deu uma palestra. Esse sonho foi seguido de uma severa crise psicótica.

O presente sonho, pelo contrário, trouxe a esperança de que brevemente a paciente seria capaz de, também estando acordada, relacionar-se com os fenômenos erótico-sensuais de uma maneira aberta e livre, e que esse âmbito da realidade também apareceria em sua existência sob a forma de fenômenos correspondentes a nosso mundo cotidiano, e nunca mais como coisas "alucinadas". Desde esse sonho, ocorreram sete anos de observação, e durante tal período jamais reapareceu qualquer vestígio de sintomatologia esquizofrênica.

No final de sua última sessão analítica, a paciente perguntou espontaneamente ao seu médico: "O que, em seu trabalho, realmente me curou?" Imediatamente, ela mesma deu a resposta: "Em primeiro lugar, foi o simples fato de poder telefonar e encontrá-lo a qualquer hora, dia ou noite, sempre que eu achasse necessário. Por muito tempo não acreditei que alguém pudesse estar sempre a meu lado. Lentamente, aprendi a confiar em você, pois dezenas de experiências provaram que você não me desapontaria. Somente então ousei viver através de você, por assim dizer, até sentir minha própria força crescer. Desta crença em sua confiabilidade, nasceu uma crescente fé no mundo todo, que eu nunca sentiria antes. Anteriormente, eu vivia apenas pela minha força de vontade, e estava sempre me puxando para cima pelas cordas de minhas próprias botas, até ficar suspensa no ar. A confiança em você deu-me a coragem de enraizar-me interiormente no verdadeiro fundamento de minha existência. O segundo fator terapêutico eficiente, igualmente importante, foi sua compreensão de meus delírios e alucinações paranóicos, o fato de você levá-los a sério. O reconhecimento de seus significados e valores genuínos capacitou-me a perceber a totalidade de meu próprio ser e a unidade entre eu e o mundo".

Pode-se alegar que muitos bons terapeutas e psicanalistas teriam se conduzido com tal paciente intuitivamente de maneira similar, sem estarem familiarizados com a abordagem daseinsanalítica. Não negamos que isto possa ocorrer, embora o autor, de sua parte, provavelmente estaria completamente perdido com este caso se a compreensão daseinsanalítica do homem não o tivesse ajudado a tempo. De qualquer maneira, pelo menos até o presente momento, somente os insights daseinsanalíticos foram capazes de nos proporcionar um entendimento explícito da eficácia dessas técnicas intuitivamente aplicadas, que vêm mais ao encontro das genuínas necessidades de nossos pacientes do que aquelas mais tradicionais. Dessa forma, a compreensão daseinsanalítica nos torna mais independentes de nossos ocasionais vislumbres intuitivos, aumentando assim, consideravelmente, a confiabilidade de nosso trabalho.

Tradução: Duda Carvalho Araújo
Revisão: Martha Gambini

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